Médico não é preparado para viver no mundo dos doentes
Médico não é preparado para viver no mundo dos doentes
“Eu não tive uma única aula sobre como ser marido de uma paciente”
Publicado no Jornal OTEMPO em 15/03/2011
PETER B. BACH – THE NEW YORK TIMES
Ponto de vista. Médico Peter B. Bach conta como foi acompanhar o tratamento da própria esposa, diagnosticada com câncer.
NOVA YORK, EUA. Como estudante de medicina 20 anos atrás, aprendi tudo sobre anatomia, fisiologia e farmacologia. Meus professores também me ensinaram, implicitamente, a vestir o jaleco branco de médico como se ele fosse um escudo contra a vulnerabilidade humana. Usando o jaleco, você poderia chegar perto da fragilidade, até a tocar, e ela não conseguiria puxar você para o estado vulnerável.
O treinamento na residência médica, com suas horas difíceis e seu ritmo incansável, acrescentou mais camadas de verniz protetoras. Mas, em todos esses anos, eu não tive uma única aula sobre como ser um paciente, tampouco sobre como ser marido de uma paciente com câncer.
Eram 8h de uma quarta-feira ensolarada e agradável de outubro quando eu fiquei nessa situação. Minha mulher, Ruth, e eu chegamos à clínica do meu colega Hiram (Chip) Cody, cirurgião de câncer de mama e companheiro de serviço há mais de uma década no Centro do Câncer Memorial Sloan-Kettering, em Nova York, Estados Unidos. Quando eu disse a ele que Ruth havia sentido um nódulo, ele abriu espaço em sua agenda imediatamente para nos atender.
Fiquei observando tudo em minha volta, como se eu fosse um visitante de primeira viagem ao meu próprio hospital. As coisas que estavam em torno de mim todos os dias da semana, de repente, viraram grande novidade: o tipo e a quantidade de formulários que Ruth foi solicitada a completar; a conduta da primeira atendente que encontramos; os funcionários que se apresentavam e os outros que nem nos diziam seus nomes.
Aí fomos para o consultório. Geralmente, esses nódulos geram ansiedade e vários exames. A maioria costuma não demonstrar nada. Fiquei encostado no canto, sem a autoridade do meu estetoscópio e do meu jaleco branco, enquanto Cody examinava Ruth. Esperei enquanto ele examinava o seio dela.
Todo ano, centenas de milhares de mulheres no mundo saem dessas consultas com notícias que mudam suas vidas. Mas muitas outras são tranquilizadas durante a consulta ou após um resultado negativo da biópsia. Desta vez: “É, Ruth, acho que isso é um câncer”.
Do outro lado. Meus colegas de dez anos no Sloan-Kettering – a quem eu via todo dia no hospital, a quem eu vi se casarem, com quem eu bebia nas festas de fim de ano e ao lado de quem eu me assentava nas reuniões – estavam prestes a se tornarem médicos de Ruth. Os lugares, pelos quais passei ano após ano – as salas de exame na clínica, os ambientes de espera perto do bloco cirúrgico, o chão do hospital por onde os pacientes andavam com tubos intravenosos – foram transformados em lugares que eu frequentaria aterrorizado em breve.
Meia hora antes daquela consulta, minha maior preocupação, quando eu ia ao hospital, era encontrar um lugar para estacionar.
Cody pegou um bloquinho e fez um desenho simples dos seios da minha mulher, com mamilos e tudo. Aí ele sobrepôs um esboço do tumor que ele havia sentido. Em uma nova folha de papel, ele desenhou uma versão ampliada do tumor crescendo, explicando como ele havia provavelmente começado dentro dos dutos de leite dela. Mais alguns rabiscos mostraram o câncer invadindo os dutos até o tecido mamário e formando a massa. Então ele mostrou como aquela doença poderia viajar pelos canais e se espalhar para os nódulos linfáticos. Era o início de uma nova vida para nós.
Tradução de André Luiz Araújo