O Padre e a Pinga Azul
Há muitos anos atrás, em Lagoa da Prata, houve um caso estrondoso na época, em que um padre “raptou” uma jovem e fugiu com ela para o estado de Goiás, se não lhe falhe a memória do contista.
Eis que dois lagopratenses, no início daquilo que seria então o prenúncio da rifa, ao passarem pela cidade de Luziânia, no Distrito Federal, encontraram o padre trabalhando na Prefeitura daquela cidade. Tentaram tomar dele a benção, mas o padre não a permitiu, se desculpando e agradecendo em seguida.
Levando os dois senhores até uma padaria, tomaram café e se alongaram numa conversa acerca da cidade de Lagoa da Prata, tendo o padre se interessado pela repercussão dos acontecimentos.
O “Avante”, contista da história de hoje, afirmou que o Padre José Pires estava bem magro, triste e ressentido por causa das decisões que tomara. Ao mesmo tempo, salientou que a esposa tivera um neném, que estavam todos bem e que ele gostaria muito de ir até Lagoa da Prata se desculpar com a família da jovem, com os amigos e também se desculpar com os fiéis e devotos da paróquia São Carlos Borromeu, pela qual se dedicou alguns anos.
Perguntado sobre em que momento ele “perdeu” a cabeça, o padre afirmou que se viu ‘enamorado’ pela moça, sua esposa… Que ela lhe roubou o coração, a emoção, os sentidos… Que não pensava em mais nada. Vez que o amor tomou conta do seu coração e deixou a “busca e manutenção das almas” em menor conta, afirmou que não era legítima a sua condição, decidindo assumir o encanto, a paixão, e deixar o celibato, vez que ele não poderia cumpri-lo.
Avante foi além… intrigado, perguntou uma vez mais ao padre se ele se lembrava do primeiro encontro com a jovem, ou do momento em que ele se avistara com ela. O Padre afirmou que fez essa mesma pergunta, mas não se recorda bem. Que talvez houvesse sido em um dia, sobre o qual possuía bonita lembrança, ao mesmo tempo uma memória sinistra.
Disse que possuía o costume de ir no Restaurante Casa Branca almoçar na segunda feira, sábados e feriados. Numa segunda foi até o restaurante e assentou-se. Numa mesa ao lado estava um senhor na casa de 70 e poucos anos, com um chapéu na cabeça e semblante estranho. Estava com um “meio sorriso” no rosto, marcado por um bigode ‘cheio’, tampando a boca, amarelo de fumo… Explicou que era um sorriso diferente; um sorriso que estava apenas na boca do sujeito, enquanto o restante do seu semblante era sombrio.
O olhar do velho era penetrante, tendo o Padre se sentido desconfortável com a situação. Parecia que o Padre estava nú, assentado ali. O velho se levantou, tirando o chapéu da cabeça, pediu licença, beijou a mão do padre, tendo ficado entre dois e três minutos em silêncio, segurando a mão dele, sem nada dizer, como se estivesse contemplando primeiramente as vestes do padre, admirando sua batina e acessórios, fixando o olhar nele, quase a enxergar a sua alma. Perguntou ao padre se poderia se assentar com ele, ocupando a sua mesa, pedindo desculpas, educado, dizendo que queria conversar; que a conversa era pouca, rápida e que não queria trazer ao Padre nenhum transtorno.
O Padre afirmou ao Avante que o velho era educado, apesar do aspecto sombrio. O velho perguntou ao Padre se ele estava doente, porque sentia a falta de ânimo dele, seu pouco entusiasmo com a vida, afirmando que o Padre deveria ir até o Doutor Ciro ou o Doutor Carlos para consulta. Ante a fala do padre que, apesar de realmente não estar muito animado com o andamento da política e do rumo que as coisas do mundo, do país, estavam tomando, acreditando que a Igreja não estava bem posicionada politicamente ante o sentimento de súplica do povo em geral, por soluções, por apontamento de caminhos, ele estaria bem.
O velho então, tomando de uma garrafa com um líquido azul dentro, colocando dois copos de madeira por sobre a mesa, afirmou que o Padre deveria então ouvir o conselho de Paulo dado a Timóteo, instruindo-o a beber um pouco de vinho para aliviar os problemas de estômago. É fato que os problemas de estômago, tal como descrito na Bíblia, atrapalhavam a vida eclesiástica de Timóteo. Afirmou ao Padre que ele deveria fazer o mesmo, colocando a bebida nos dois copos de madeira, servindo ao Padre um deles.
O Padre, após agradecer o conselho, tomou então desta bebida… Disse que o “mundo girou por sobre a sua cabeça”, baixando a cabeça sobre a mesa, ouvindo ao longe as gargalhadas do velho…
O Padre disse que passados de 5 a 7 minutos, foi acordado pelo garçom tocando-lhe o braço, dispondo os talheres sobre a mesa, colocando também as vasilhas de comida para o Padre se servir. O Padre perguntou ao garçom onde teria ido o velho que estava com ele assentado, bem como a bebida a qual teria tomado. O garçom riu, dizendo ao Padre que muito provavelmente ele teria dormido, que ele teria sonhado, porque desde o momento que o Padre se sentara ali, estivera durante todo o tempo sozinho. Ainda mais, que o Padre estava sozinho debaixo daquela frondosa árvore, sendo que os demais clientes estariam todos no interior do restaurante e que o Padre afirmou que queria ficar sozinho.
Ante o suor excessivo em sua testa, uma menina que ajudava nos trabalhos do restaurante veio e, utilizando-se de uma toalha de rosto branca, cheirosa, que ela detinha dobrada dentro da bolsa para o seu próprio uso, passou-a no rosto do padre, ofertando a ele a toalha. Disse o Padre que, olhando a moça, ficou enamorado.
Depois muitos anos, contou ao Avante que numa certa feita, no litoral da Bahia, uma baiana se apresentou a ele, dizendo que lhe serviria de graça uma bebida. O padre então, pedindo licença à sua esposa (a moça da toalha, a moça do rapto) e aos filhos (já eram quatro naquela oportunidade), sendo que o mais velho, ‘Netinho’, já estaria com 20 anos, aproximadamente), disse que tomaria uma bebida.
Disse que ficou atônito quando a mulher colocou “dois copos de madeira” sobre a mesa, retirando a garrafa com aquele líquido azul de dentro de uma caixa de madeira, servindo o copo do Padre. O Padre perguntou à mulher que bebida era aquela, tendo a mulher afirmado que era “Absinto”. O Padre afirmou que nunca tomara daquela bebida, tendo a mulher afirmado “que o Padre estava enganado, que ele já tomara daquela bebida há alguns anos antes”, estampando no rosto o mesmo “meio sorriso” daquele velho, soltando uma gargalhada sonora, sinistra, fazendo o Padre retornar na memória até aquela data, há muitos anos atrás.
Deixou cair o copo de madeira no chão e correu, tendo os filhos e a esposa corrido atrás dele, perdendo-o na multidão. No fim da tarde, depois de procurarem-no em todo canto, encontraram-no aos pés da imagem de São Sebastião, na Capela da Anunciação, na parte baixa do centro histórico, rezando …. Teria tido encontros com o próprio demônio, pensou…
A esposa dele, passando uma toalha branca em seu rosto, perguntou-o o que estava acontecendo, enxugando-lhe o suor. O Padre olhou para a sua esposa dizendo que, na verdade, acreditava que teria sido o próprio demônio quem lhe servira a “pinga azul” no dia em que eles se viram pela primeira vez.
Histórias que o povo conta…
Isaias Junior Ribeiro – Novembro de 2021